Longa Marcha é Stephen King no modo “Bachman”: sem sobrenatural, sem palhaço dançando no bueiro, só o horror mais indiscutível de todos — um Estado que transforma sofrimento juvenil em entretenimento nacional. E é quase engraçado (no sentido “riso nervoso”) que o filme chegue num momento em que a humanidade já aprendeu a torcer por gente em ilha, em confinamento, em humilhação ao vivo, em “prova de resistência” com patrocínio. King escreveu isso no fim dos anos 70; a gente aperfeiçoou o modelo com Wi-Fi.
A premissa é tão simples que parece piada cruel: num EUA alternativo dos anos 70, cinquenta garotos (um por estado) entram numa competição anual. Eles precisam caminhar numa estrada infinita mantendo no mínimo 3 milhas por hora. Caiu abaixo? Aviso e dez segundos pra recuperar. Três avisos e os soldados atrás deles — M16 na mão, coração de pedra — executam. É “maratona” com pena de morte. É Jogos Vorazes sem arco e flecha, só com joelho estourando e a certeza de que o público quer sangue porque a vida real não dá ibope.
Francis Lawrence é, ao mesmo tempo, a escolha óbvia e a escolha certa. Depois de quatro Hunger Games, ele sabe filmar adolescente preso em espetáculo distópico com uma competência quase cínica. E aqui ele consegue algo difícil: tornar cinematográfica uma ação repetitiva. O filme vive do ritmo do cansaço, do som do asfalto, do sono que vira alucinação, da conversa que começa como zoeira de vestiário e termina como confissão de condenado. É um filme de estrada que não te leva a lugar nenhum — e essa é a piada macabra: o destino sempre foi o mesmo.
O roteiro (de JT Mollner) escolhe focar no núcleo certo. Ray Garraty (Cooper Hoffman) é o sensível, o garoto que parece estar ali por algum tipo de necessidade existencial que ele mesmo não entende. McVries (David Jonsson) é o otimista por teimosia — aquele tipo de personagem que faz você pensar “ele vai quebrar”, e quando quebra você sente como se tivesse falhado junto. A amizade entre os dois é o coração pulsando num corpo que está apodrecendo em movimento. E o filme acerta ao mostrar que, num jogo feito para ser “cada um por si”, a humanidade sobrevive em microcomunidades improvisadas: dividir água, segurar o outro acordado, inventar piada para impedir o cérebro de olhar para a linha do horizonte e aceitar a morte.
Em volta deles, o filme espalha figuras que servem como mapa moral desse inferno: Olson (Ben Wang) é o alívio cômico que você aprende a amar porque ele ri quando deveria chorar; Barkovitch (Charlie Plummer) é o sabotador, o garoto que já entendeu que a regra do sistema é transformar vítimas em algozes — e ele joga com gosto. Esses arquétipos poderiam ficar “literários” demais, mas o elenco dá carne e suor. E é aí que Longa Marcha ganha: você não precisa de backstory detalhada quando o rosto do ator já parece uma história inteira.
Visualmente, há algo de purgatório poeirento na estrada filmada por Jo Williams. Lawrence enche o caminho de “Americana” quebrada: cidades abandonadas, fachadas vazias, uma igreja, uma figura solitária parada como se fosse memória. O país aqui parece ter desistido de si mesmo — e, quando um país desiste, ele procura sentido no espetáculo. O filme tem uma vibe As Vinhas da Ira com fuzil: miséria como paisagem, autoritarismo como entretenimento, juventude como combustível.
E aí vem Mark Hamill como o “Mayor”, a voz do regime. Vou ser cruel: ele está meio fora do tom. Hamill entrega uma caricatura de vilão de desenho animado, enquanto o filme ao redor pede sujeira e desespero sem caricatura. É a rara escolha de elenco que parece gritar “olha pra mim!” num filme que funciona melhor quando tudo parece inevitável e sem centro. Ele não estraga, mas desloca.
Agora, o que define Longa Marcha de verdade é o terror físico — e eu vou manter isso sem entrar em detalhes gráficos. O filme é brutal. Ele faz questão de lembrar, repetidamente, que o prêmio é sobreviver enquanto seus colegas são abatidos por falha mínima: um tropeço, uma cãibra, um segundo de desmaio. A mecânica da morte vira relógio, e a pior parte não é o sangue: é o pânico de perceber que, depois de ver alguém cair, você precisa… continuar andando. A violência aqui não é “divertida”; é disciplinar. É o Estado dizendo: “mexe”. E tem um eco claro de Vietnã no subtexto — a ideia do “draft”, jovens empurrados para morrer sob ordem militar enquanto o público assiste, chocado e fascinado.
O filme tem um problema inevitável: ao se concentrar tanto em Garraty e McVries, algumas mortes do fim não pesam como poderiam. Você caminhou quilômetros com um monte de rostos, mas não conheceu todos. Quando alguns caem, é mais “estatística” do que tragédia individual. Só que isso, ironicamente, também combina com a crítica do filme: o sistema não quer que você conheça ninguém demais. Conhecer cria empatia. Empatia derruba audiência.
No fim, Longa Marcha é uma das adaptações de King que mais entendem o que o autor estava fazendo com “Bachman”: não te assustar com o impossível, mas com o provável. O horror não é “e se existisse um monstro?” O horror é “e se a gente aceitasse isso como normal?” E, olhando para o mundo, dá vontade de responder: a gente já aceitou. Só falta o asfalto.
No placar do Cinema de Buteco: Longa Marcha é cardio fascista com coração verdadeiro. Um filme que dói na perna, mas dói mais na consciência.
