Se você entra em Desconhecidos (Strange Darling) esperando “mais um thriller de serial killer”, parabéns: o filme te dá exatamente isso… e depois te chama de ingênuo por acreditar em linhas retas. JT Mollner embaralha a cronologia como um crupiê maldoso e vai soltando capítulos fora de ordem só para ver você montar o quebra-cabeça com as mãos tremendo. Funciona porque não é bagunça: é controle. O roteiro te manipula com uma calma quase ofensiva, fazendo você achar que entendeu “quem é quem” — e então troca as placas da estrada enquanto você dirige.
O truque de filmar em 35mm (Giovanni Ribisi como diretor de fotografia, sim, aquele ator) não é só fetiche vintage: dá ao filme uma textura suja, granulada, “anos 70/80”, como se você tivesse encontrado uma fita proibida num armário que devia permanecer trancado. A câmera não tem pressa de te confortar; ela prefere te encurralar. Tem composição ousada, enquadramento que brinca com profundidade (aquele tipo de plano que parece dizer “olha ali atrás, otário”) e uma energia de cinema que não parece fabricada por departamento de “conteúdo” de streaming.
A premissa é simples e perigosa: um homem (Kyle Gallner) e uma mulher (Willa Fitzgerald) cruzam caminhos, e o que parecia um encontro casual vira um jogo de gato e rato com violência pesada. O filme faz questão de te apresentar “rótulos” — quase arquétipos — para depois te mostrar como rótulo é só um jeito preguiçoso de organizar o medo. E Gallner, que tem cara de bom moço com sombra nos olhos, funciona perfeitamente para esse tipo de história em que nada é exatamente o que parece. Fitzgerald, por outro lado, é o motor: ela sustenta tensão, vira o volante em curva fechada, te puxa pela nuca e te obriga a acompanhar.
Aqui vai o ponto que vai dividir a mesa do bar (e eu adoro quando divide): Desconhecidos flerta com misoginia e com o “final girl trope” do jeito mais provocativo possível, quase como se dissesse “vamos ver até onde você aguenta sem transformar tudo em discurso pronto”. E, sim, é desconfortável. O filme brinca com papéis de poder e com a fantasia de perigo — e em vários momentos você sente que ele está cutucando uma ferida cultural com a unha suja. Mas a diferença entre “filme escroto” e “filme que usa o escroto para te testar” está na precisão: Mollner encena com disciplina cirúrgica, de um jeito que parece saber exatamente a reação que quer arrancar de você. O desconforto não é acidente; é ferramenta.
O que me pega é como o filme se recusa a virar palestra. Ele te dá pistas, te dá viradas, te dá humor negro em gotas — e deixa você fazer o trabalho sujo de organizar moralmente o que viu. Isso é brilhante e um pouco canalha, porque tem gente que sai do cinema com vontade de “explicar” o filme para os outros como se fosse relatório de RH. Não é. É um susto construído como quebra-cabeça, e o prazer aqui é perceber que você foi manipulado sem perceber. E antes que alguém venha com “ah, mas é Tarantino”: calma. A não-linearidade aqui não é pose de cool; é estratégia para embaralhar empatia e te fazer julgar errado na velocidade certa.
Elogio técnico obrigatório (porque quando é bom, é bom): o filme sabe o valor do silêncio e do timing. Ele sabe quando segurar, quando acelerar e quando te deixar desconfortável com uma conversa curta demais, ou longa demais. Há uma malícia de cinema “antigo” no melhor sentido: menos explicação, mais sensação. E isso combina com a proposta de ser uma história contada em capítulos — como se cada segmento fosse uma cartada.
No Brasil, ele saiu como Desconhecidos, e a estrutura embaralhada virou até assunto de “explicado em ordem cronológica” quando chegou aos cinemas por aqui (abril de 2025). Quanto a “onde assistir”, lá fora ele pintou em VOD e plataformas (há listagens em Paramount+ e serviços de aluguel/compra, dependendo da região). No Prime Video, a disponibilidade varia por local — tem país em que aparece, mas pode estar indisponível no Brasil.
Veredito do Cinema de Buteco: Desconhecidos é o tipo de terror que não quer ser “agradável”. Ele quer ser eficiente. E é. Vai ter gente chamando de “provocação vazia” porque hoje todo mundo quer etiqueta moral antes do play. Vai ter gente chamando de “obra-prima” porque é tecnicamente afiado e narrativamente esperto. Eu fico no meio, com sorriso torto: é audacioso, incômodo e brilhantemente montado, mas ele brinca com fogo — e você precisa estar disposto a sentir o calor sem fingir que não queimou. Dou 4/5: não é conforto. É corte limpo.

