
Kiyoshi Kurosawa sempre soube filmar o ar como se ele estivesse contaminado. Em Cloud, ele pega aquela paranoia fantasmagórica de Pulse e a hipnose moral de Cure e troca o sobrenatural por algo muito mais deprimente: a internet como máquina de moer gente comum. Só que ele não volta ao J-horror “clássico” do susto no corredor; ele monta um thriller de vingança com cheiro de pólvora e rancor de fórum. É como se alguém colocasse Reservoir Dogs numa vitrine de “usados” do marketplace e o filme, ofendido, resolvesse se vingar.
A primeira facada vem cedo, com uma frase que parece piada e é sentença: depois de um sujeito implorar pela própria vida, alguém solta algo na linha de “tarde demais pra viver agora”. E, olha… não é que eu queira ser dramático (mentira: eu quero), mas esse é o espírito do filme inteiro. Em 2025, você não precisa de demônio: basta um perfil, um apelido e a certeza de que ninguém vai te encarar nos olhos. Kurosawa entende que a desumanização virou interface.
O nosso “herói” é Yoshii (Masaki Suda), um operário que olha para o emprego certinho, a promoção oferecida pelo chefe, o caminho de gente “normal”… e diz “não”. Ele decide que o futuro é vender bugiganga online com lucro pornográfico: compra barato, vende caro, e chama isso de “visão”. A primeira cena já te mostra o método: ele negocia como quem assalta sorrindo. E a coisa cresce: casa maior, vida melhor, namorada (Akiko, vivida por Kotone Furukawa), um assistente (Sano, Daiken Okudaira) e um ego que se alimenta daquela fantasia moderna de empreendedor: “sou meu próprio patrão” (tradução: “sou meu próprio predador”).
Só que Yoshii — que atende por Ratel online — vende falsificação, enrola cliente, subestima fornecedor e usa a nuvem como máscara. O detalhe delicioso é que ele se acha pequeno demais para sofrer consequência grande. E aí o filme faz o que a internet faz melhor: cria uma multidão com “motivo” e sem freio. Surge o rancor coletivo, a caçada moral, o “vamos achar esse cara”. Só que, em Kurosawa, o ódio nunca fica preso na tela. A rede é só o fósforo; o incêndio é físico.
A primeira metade é Kurosawa puro sangue: tensão baixa, sombra no canto do quadro, figura parada longe demais, barulho que não combina com o que você vê. Yoshii começa a suspeitar que tem alguém rondando a casa, e você sente o diretor ensaiando aquele mergulho existencial que ele domina como poucos — aquele terror de “o mundo ficou vazio e ninguém te avisou”. A diferença é que aqui o fantasma tem CPF e rancor acumulado em thread.
Na segunda metade, Cloud vira outra coisa: um thriller brutal, nervoso, quase cruelmente divertido, que usa um galpão/depósito abandonado como arena. Kurosawa transforma o lugar num “casa dos horrores” industrial — e não é por acaso: é um espaço de trabalho morto, um cenário onde gente como Yoshii e seus perseguidores provavelmente teria emprego décadas atrás. Agora, tudo foi para o online. O filme parece dizer, sem discurso: quando a economia vira avatar, o sangue vira logística.
E aí vem a pergunta que o filme adora jogar no seu colo como saco de lixo moral: como você deve se sentir sobre a punição de Yoshii? Ele é um golpista? Sim. Ele merece? Depende do tamanho da sua sede de linchamento. O ponto esperto é que Kurosawa não faz dele “o pior homem do mundo”; ele faz dele um cara medíocre com poder demais para a própria ética, o que descreve metade do planeta conectada. Ao mesmo tempo, a turminha da vingança é um bando de desajustados que mal consegue organizar a própria violência — gente que acha que está corrigindo o mundo e, na prática, só quer ter uma arma na mão e uma justificativa no bolso. Ninguém ali é santo. E é exatamente por isso que o filme funciona: porque parece a nossa época filmada sem filtro de Instagram.
Masaki Suda segura o filme num equilíbrio difícil: Yoshii é frio, calculista e apavorado ao mesmo tempo. Ele tem aquele pânico patético de quem construiu a identidade inteira em cima de “crescimento” e descobre que o mundo não te deve continuidade. A tragédia aqui não é só “o golpe dá errado”. É que o capitalismo online ensinou esse cara a viver como algoritmo — e quando o algoritmo cobra, ele não tem humanidade para negociar.
O veredito do Cinema de Buteco é simples (e cruel): Cloud não é sobre tecnologia “do mal”. É sobre o fato de que, quando nada é real — quando tudo é perfil, reputação, avaliação, comentário — a moral vira uma função opcional. Kurosawa filma esse vazio como quem já viu o futuro e não gostou do que encontrou. E o filme te deixa com aquela sensação irritante de verdade boa: não tem “lição”, tem ressaca.
Para quem quer saber o serviço: o filme tem cerca de 2h04, é creditado como produção japonesa de 2024 com lançamento internacional rolando em 2025, e aparece disponível na MUBI.

