O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: esta crítica contém spoilers sobre reputações frágeis, e-mails imprudentes e decisões que parecem certas… até cinco minutos depois.
Luca Guadagnino decidiu entrar no campo minado da “cancel/consequence culture” e, ao invés de gritar tese no nosso ouvido, preferiu sussurrar dúvidas. Depois da Caçada é um thriller de campus elegante e pérfido, desses que começam como debate de mesa-redonda e terminam como autópsia de caráter. O filme se passa entre gabinetes com cheiro de mogno, taças que nunca esvaziam, tapetes que abafam passos culpados e uma trilha tic-tac de Trent Reznor & Atticus Ross lembrando que toda moral tem prazo de validade.
Sobre o que é (de verdade)
Na superfície, é simples: Alma Imhoff (Julia Roberts, afiadíssima), professora de filosofia prestes a conquistar a santa tenure, vê sua rotina implodir quando Maggie (Ayo Edebiri), sua pupila favorita, acusa Hank (Andrew Garfield), amigo íntimo de departamento (e, talvez, algo mais), de agressão. A reitoria se move, a fofoca tem MBA, e a vida de todo mundo vira nota de rodapé em tempo real.
Mas Guadagnino e a estreante Nora Garrett não querem “quem mentiu?”. Querem “quem se conta qual história para continuar se olhando no espelho?”. É um filme sobre viés, memória, poder e autopreservação — e sobre o abismo geracional entre quem penou para abrir a porta e quem entrou na sala já mobiliada. Dúvida (no melhor sentido à la John Patrick Shanley) é o motor: cada nova revelação reforça que certeza absoluta é luxo de quem não viveu o suficiente.
O trio elétrico da ambiguidade
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Julia Roberts transforma carisma em arma branca. Alma é brilho, controle e rachaduras: sedutora quando precisa, ética quando convém, devastada quando a conta chega. Roberts honra cada vírgula — e o figurino academia-chic de Giulia Piersanti vira extensão do personagem: casacos que protegem, golas que sufocam.
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Andrew Garfield entrega um Hank escorregadio, desses que você crê e descrê no mesmo plano. Quando a água bate no queixo, ele encontra cores novas num ator que já era camaleão.
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Ayo Edebiri dá textura a Maggie para além do “símbolo” — e o roteiro flerta (sem aprofundar o bastante) com a interseção negra, queer e milionária que raramente o cinema aborda sem carimbo caricatural.
A faca de Guadagnino
O diretor filma Yale como cena do crime afetivo: festas quentes, luz âmbar, livros como barricadas. A câmera se move com civilidade felina — seduz primeiro, devora depois. A montagem pinga informação no conta-gotas, sincronizada ao cronômetro sonoro de Reznor/Ross. Quando estoura, estoura sem gritaria — e doem mais as pausas do que os socos.
Onde o filme tropeça (e escolhe tropeçar)
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Há um gesto gráfico-musical de abertura que remete a “aquele diretor nova-iorquino” e traz ruído desnecessário; o próprio filme já tem personalidade moral suficiente para não piscar para polêmica alheia.
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Maggie merecia mais páginas: sua posição social e afetiva é explosiva — o filme mapeia, mas não desarma a bomba por completo.
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Em dois ou três momentos, a dramaturgia flerta com “twist de tribunal” quando o que ela tem de melhor é erosão lenta.
O golpe final
O epílogo é de levantar devagar. Depois da Caçada não pergunta “Hank é culpado?” — pergunta “e você, o que precisa acreditar para continuar sendo ‘o mocinho’ da própria narrativa?”. É cinema que incomoda com boas maneiras, recusa panfleto, exige repertório e, no fim, sai do debate sobre #MeToo para algo maior: a incapacidade contemporânea de sustentar duas verdades ao mesmo tempo.
Veredito
Elegante como um cashmere, cortante como lâmina escondida na manga. Depois da Caçada é o raríssimo drama de “tema quente” que confia na inteligência do público e condena certezas, não pessoas.
Nota: 4,5 taças de vinho em 5 — embriaga, desnuda e deixa aquele gosto amargo que só os bons filmes morais sabem servir.

