Crítica: Diário de Viagem (2020)

Enquanto a magreza é reverenciada todos os dias em revistas, redes sociais, programas de TV, filmes, novelas e anúncios e em outros veículos, os transtornos alimentares se tornam, cada vez mais, uma realidade vivida por pessoas que, de alguma maneira, querem se ver representadas, incluídas e também bonitas aos olhos da sociedade. O preço pela busca dessa beleza, tão desejada e idealizada, pode ser muito caro. Diário de Viagem, primeiro longa-metragem da cineasta Paula Kim, explora as angústias de quem sofre de transtornos alimentares e como isso pode afetar todos os campos da vida de uma pessoa.

Sob uma direção regada a muita sensibilidade, Diário de Viagem conta a história de Liz (Manoela Aliperti, de Malhação: Viva a Diferença), uma garota de família de classe média que, nos anos 90, tem a oportunidade de fazer um intercâmbio na Irlanda, um privilégio concedido a poucos. Enquanto seus pais se empolgam com a experiência da filha, Liz não enxerga as coisas da mesma maneira e vê a viagem como uma espécie de ponto de partida para o seu fracasso. Ela volta do exterior desequilibrada e obsessiva, resultado dos transtornos alimentares que desenvolveu.

A transformação de Liz, ao longo do filme, nos dá a percepção de como a privação de alimentos pode mudar alguém em cada detalhe e refletir em todas as suas relações. Liz não tem um sentimento de pertencimento nos círculos sociais que frequenta, não se vê como parte de um grupo sua autoestima, cada vez mais, cai. É como se o esforço de deixar de comer fosse a resposta para todos os seus questionamentos sobre si mesma.

Em um diário, ela permite que os sentimentos transbordem e relata tudo o que sente e o que gostaria. Enquanto isso, nos compadecemos por uma pessoa tão jovem carregar um fardo tão pesado em suas costas, quando suas preocupações não deveriam ser algo além do esforço para ter boas notas no colégio e, talvez, algum flerte. A relação de Liz com amigos, paqueras e com os pais, aos poucos, se torna distante e fria.

Os pais, compreensivelmente, percebem que a situação está fugindo do controle e tentam, a todo custo, intervir para a recuperação da filha, mas, assim como  acontece quando alguém precisa deixar de usar drogas, a decisão de decidir parar tem que partir da própria vítima. 

Diário de Viagem é inspirado na história da própria diretora, Paula Kim, que demonstra um certo distanciamento da narrativa, mas sem perder a familiaridade e o respeito, competências necessárias para abordar um tema tão sensível. Desde 2015,  ela coordena o projeto Sobre Nossa Visão Distorcida, plataforma transmídia de conscientização escrita por pessoas que tiveram experiências com transtornos alimentares, direcionado ao público jovem e adolescente.

Virginia Cavendish brilha no papel da mãe da adolescente e transmite a sensação de incerteza de questionamentos sobre o que pode ter feito de errado. Por sua vez, Eucir de Souza interpreta o papel do pai da adolescente, alguém a quem ela vê como homem respeitável e respeitador, apesar da relação deles estar bastante balançada desde antes da viagem da adolescente.

Mas é Manoela Aliperti a estrela do filme e quem mostra muito talento em um papel difícil de ser mostrado em tela. A decadência de Liz é assustadora, comovente e admirável e a atriz tem tudo para ter, cada vez mais, destaque no audiovisual brasileiro . 

O cinema nacional com abordagem jovem ainda sofre preconceito por parte do público e com pouca divulgação, mas Diário de Viagem merece a atenção dos jovens que gostam e consomem filmes e/ou séries, independente da faixa etária. Califórnia, da Marina Person, As Melhores Coisas do Mundo, de Laís Bodanzky, e Antes que o Mundo Acabe (Ana Luíza Azevedo) são sugestões de títulos que, assim como Diário de Viagem, trazem adolescentes tendo que passar por um processo de amadurecimento antes do momento que normalmente é esperado.

Imagem: Pandora Filmes

Para quem tiver interesse em outros filmes que também abordam o assunto, O Mínimo Para Viver (To the Bone, Marti Noxon, 2017) está disponível na Netflix, e o documentário Thin (Lauren Greenfield, 2006), na HBO Max. Diário de Viagem chega aos cinemas dia 17 de novembro.