Se existe um subgênero que Hollywood deveria registrar em cartório é o “Nicolas Cage tentando ser uma pessoa normal e falhando de forma espetacular”. O Surfista (The Surfer) é isso, só que temperado com sol australiano, localismo tóxico e uma regra simples, repetida como mantra de seita: “não mora aqui, não surfa aqui”. A premissa já nasce com sangue no olho: um homem (sem nome, mas a energia é 100% Cage) volta à praia da infância para surfar com o filho adolescente e mostrar a casa dos sonhos que ele tenta comprar ali perto — um projeto sentimental de “recuperar o passado” disfarçado de investimento imobiliário. Só que a praia virou território de um bando de valentões liderados por Scally (Julian McMahon), um guru de masculinidade de boutique que sorri como tubarão corporativo e trata turista como invasor.
Lorcan Finnegan dirige como quem quer te deixar desconfortável com prazer. É um B-movie de luxo: barulhento, agressivo, delirante, mas com controle de câmera e atmosfera de cineasta que sabe onde está pisando. A sensação é de cair num pesadelo diurno — a areia que queima, o asfalto que derrete, o ar pesado de humilhação pública. O filme estreou em Cannes no slot da meia-noite, e faz sentido: tem energia de briga de bar em câmera lenta, só que na praia e sem ninguém chamando a polícia (ou melhor: até chamam, e aí você entende o nível da contaminação).
O melhor (ou pior, dependendo do seu nível de tolerância) é ver Cage sendo empurrado, cena após cena, para fora do “adulto funcional” e para dentro do “bicho acuado”. Primeiro ele é barrado. Depois é ridicularizado. Depois perde coisas. Depois perde o controle. Em pouco tempo, o cara que chegou de carro bonitão e sonhos bem embalados está vivendo no estacionamento, improvisando sobrevivência, encarando cada dia como um teste de resistência emocional. E Cage, abençoado seja, entende que o filme não quer elegância: quer degradação com estilo. Ele gira o dial da atuação do “confuso” para o “irritado” e daí para o “vulcânico” como se estivesse apostando que vai explodir antes do último ato — e a gente aposta junto.
Finnegan e o roteirista Thomas Martin não fingem que isso aqui é realismo social. É fábula agressiva: uma crise de meia-idade vestida de exploitation setentista, um “western de praia” onde o revólver é a humilhação e o duelo é quem aguenta mais apanhar sem desistir de pertencer. Scally solta uma frase que vira programa de governo dos Lunar Bay Boys: “antes de surfar você precisa sofrer”. Serve como bullying, serve como catequese e serve como piada metalinguística sobre o próprio Cage — um ator que sempre parece disposto a se quebrar inteiro em cena para depois se reconstruir na base do grito.
E aqui vai a parte que faz metade da internet amar e metade pedir boicote: o filme é sobre pertencimento, mas também sobre o ridículo dessa fantasia de “voltar pra casa” quando você já não cabe mais nela. O protagonista nasceu na Austrália, viveu nos EUA, e carrega essa identidade meio quebrada — o tipo de sujeito que acha que dinheiro compra retorno emocional. Só que a praia não está à venda. Ou pior: está, mas quem vende é um grupo de homens que transforma território em religião e “ser local” em desculpa para sadismo.
Tem gente que vai chamar de “exagerado”. Sim, é. E esse é o ponto. O Surfista opera no modo alucinado: você sente que a realidade vai ficando cada vez mais torta conforme o personagem derrete ao sol (e por dentro). É um filme que te desafia a rir da crueldade enquanto percebe que, no fundo, a crueldade é o motor. O que começa como disputa de praia vira uma guerra de humilhação e poder — e o que o filme esfrega na sua cara é que a linha entre “ritual de pertencimento” e “violência gratuita” é uma piada contada por quem bate.
Agora, o veredito com faca nos dedos: eu adoro que O Surfista não pede desculpa por ser esquisito. Ele não tenta ser “importante” do jeito chato; ele prefere ser sujo, febril e simbólico, com Cage no centro como santo padroeiro do homem patético que quer dignidade e recebe areia na boca. Mas aviso: é filme que pode irritar porque cutuca masculinidade, classe, status e essa doença contemporânea chamada “direito de pertencer a qualquer lugar”. Se você for do time que acha que todo protagonista merece um abraço, fuja. Aqui o abraço vem com cotovelada.

