Reformatório Nickel (Nickel Boys) é daqueles filmes que chegam com cara de “prestígio do Oscar” e te dão um tapa por você ter pensado nisso. Sim, é adaptação do romance do Colson Whitehead, sim, é sobre um reformatório racista no sul dos EUA, sim, tem tudo para cair no buraco do trauma porn em HD. Mas RaMell Ross não está aqui para “recontar” a dor com a segurança morna de quem quer prêmio. Ele filma como quem arranca a câmera da parede e diz: “quer olhar? então olha direito — e sem o conforto do distanciamento”.
A história, em termos de trama, é simples e bíblica (no pior sentido): Elwood (Ethan Herisse), garoto negro inteligente na Flórida segregacionista dos anos 60, cai numa armadilha do sistema — um daqueles acidentes sociais que parecem pequenos até você entender que a engrenagem foi feita para isso. Ele vai parar na Nickel Academy, instituição inspirada numa escola real notória, e lá conhece Turner (Brandon Wilson), que vira amigo, escudo e espelho. Dentro daquele lugar, a regra é cristalina: brancos mandam, negros “aprendem” na pancada, e “desaparecer” pode virar burocracia.
O que transforma Reformatório Nickel em cinema de verdade é a decisão formal que parece arrogante até funcionar: o filme é contado em primeira pessoa — literalmente pelos olhos do personagem. Você não “vê Elwood sofrer”; você ocupa o lugar dele. E isso muda tudo. A infância aparece como epifania sensorial: luz batendo em objetos, televisão acesa com o país se vendendo como promessa, pequenos milagres do cotidiano. Aí, sem o filme precisar gritar, você percebe que essas memórias já vêm com tragédia criptografada. A beleza não está ali para enfeitar a violência; está ali para te lembrar o que foi roubado antes mesmo de a história dizer “roubo”.
E aqui entra a parte polarizadora: tem quem odeie o truque do POV porque quer “ver atuação”, “ver rosto”, “ver cena”. Só que Ross usa essa ausência como arma ética. Quando você raramente pega um reflexo — no ferro de passar, numa vitrine, em fotos — não é firula. É comentário: num sistema que trata corpos como intercambiáveis, o rosto vira luxo. E, quando a narrativa começa a alternar para o ponto de vista de Turner, o filme não “explica” — ele cola os dois, estruturalmente, como a instituição cola: dois meninos reduzidos a função, tentando manter identidade na marra. É brilhante e cruel.
O mais devastador é que Reformatório Nickel se recusa a ser sádico. Ross entende que o espectador moderno tem um apetite doentio por “realismo brutal” — aquela coisa de gente que quer sentir que sofreu junto, mas só até a próxima notificação. Então o filme frequentemente empurra o horror para fora do quadro. Você sente o que acontece sem precisar transformar dor em espetáculo. Essa escolha é mais forte do que mostrar tudo, porque te coloca no lugar certo: o do sobrevivente, que vive com o eco e com a ausência, não com replay.
Aunjanue Ellis-Taylor, como a avó de Elwood, é o coração que ainda bate num país que insiste em chamar brutalidade de “disciplina”. Existe uma cena — o tipo de cena que alguns chamariam de “momento abraço” com desprezo — que aqui vira soco. Porque não é abraço como catarse; é abraço como substituição, como tentativa desesperada de manter alguém vivo pela imaginação. Se você não desmonta ali, cheque se você ainda está ligado na tomada.
Tecnicamente, é um daqueles casos raros em que forma e tema viram uma coisa só: a fotografia de Jomo Fray tem um lirismo que não romantiza, e a direção de arte (com Nora Mendis) cria um mundo que parece “normal” demais — e é isso que apavora. Porque o recado é simples: o inferno, quando institucional, costuma usar uniforme e calendário.
E o filme ainda acerta numa ironia que dói: quando Elwood percebe que, dentro da Nickel, a crueldade é pelo menos honesta sobre a realidade política — ao contrário do “lá fora”, cheio de teatro — você entende por que essa história não é só passado. É um manual do presente com capa vintage. O resultado é um coming-of-age de sobrevivente: dissonante, belo, raivoso e, principalmente, impossível de esquecer.
Onde assistir: no Brasil, Reformatório Nickel / Nickel Boys entrou no Prime Video em 27 de fevereiro de 2025 (perto do Oscar).

