Sovereign é aquele tipo de filme que começa com um “deu ruim” e volta no tempo porque sabe que o pior não é o que aconteceu — é como a gente chegou lá. Christian Swegal (estreando em longa) abre com o rastro de um confronto envolvendo tiros e polícia, e depois puxa o freio de mão para mostrar o pai e o filho que estavam se preparando para essa colisão há meses (talvez anos), com a paciência metódica de quem confunde paranoia com filosofia. Inspirado nos eventos reais ligados aos tiros contra policiais em West Memphis (2010), o filme não precisa de exagero: a realidade já veio com roteiro pronto e gosto de ferrugem.
Nick Offerman, que muita gente ainda guarda na gaveta do “carismático engraçado”, faz aqui um Jerry Kane que dá vontade de aplaudir e internar ao mesmo tempo — e isso é elogio. Jerry é um sujeito do interior que torceu leis, frases de efeito e “direitos naturais” até construir um universo paralelo onde o banco não manda, o Estado não existe e o bom senso é sempre “propaganda do sistema”. De dia, ele roda o país discursando para pessoas desesperadas (que ele chama de “despertas”); de noite, participa de programas de rádio vendendo desobediência como se fosse curso online. Só que o filme é cruelmente honesto: a crença dele não protege ninguém. Não protege o próprio Jerry, e principalmente não protege o filho adolescente, Joe (Jacob Tremblay), que aprende a respirar dentro dessa bolha como quem aprende a viver em um quarto sem janela.
Swegal tem um acerto irritante: ele te dá, por alguns minutos, a sensação de que Jerry “tem um ponto”. Quem ama banco? Quem confia plenamente no governo? Quem não está cansado de burocracia, dívida, e promessa vazia? O filme reconhece essa raiva difusa (que atravessa tribos políticas) e mostra como ela vira combustível perfeito para o tipo de guru que oferece uma coisa irresistível: controle. Só que Sovereign também te corta a ilusão antes de ela virar torcida. Porque Jerry não é um rebelde romântico; ele é um pai orgulhoso demais para admitir que está errado — e esse orgulho vira doutrina doméstica.
E aqui está o soco: apesar do título e da presença gigantesca de Offerman, Sovereign é o filme do Joe. Tremblay faz o trabalho mais difícil: atuar a beira de uma epifania sem cair na caricatura do “adolescente oprimido”. Ele idolatra o pai (porque a solidão foi planejada para isso), mas começa a desejar o que todo garoto deseja quando percebe que a vida pode ser mais do que um sermão: escola, amigos, uma garota ali por perto, alguma normalidade. É um personagem preso num cabo de guerra entre carinho e manipulação. E o filme, sem ficar didático, mostra o mecanismo da herança emocional: primeiro vem o direito (“o mundo me deve”); depois vem o isolamento (“só ande com quem concorda”); aí nasce a ficção (“eles estão contra nós”); e, quando a vida aperta de verdade — despejo, falta de dinheiro, humilhação — a violência aparece como último argumento de quem perdeu todas as discussões internas.
A narrativa paralela com o chefe de polícia John Bouchart (Dennis Quaid) e o filho policial (Thomas Mann) é um espelho interessante, embora nem sempre tão afiado quanto poderia. Ainda assim, ela reforça a ideia mais incômoda do filme: a paternidade, aqui, é uma máquina de imprimir valores — e valores podem ser amor ou podem ser algema. O Guardian foi certeiro ao notar que o filme “pega pesado” no vínculo tóxico entre Jerry e Joe, enquanto o braço policial, apesar de forte, é menos memorável.
Visualmente, Sovereign é discreto do jeito certo: fotografia observadora, casa caindo aos pedaços, um quintal que parece inventário de derrota, e aquela iluminação dura que deixa tudo com cara de “meio-dia eterno”, como se o mundo estivesse exposto demais para esconder vergonha. Não é um filme apressado, porque ele sabe que o terror real não é o pico — é o simmer, a fervura lenta da fala ficando mais agressiva, do pai ficando mais messiânico, do filho ficando mais quieto. Quando Jerry finalmente cruza a linha (e o filme deixa claro que ele cruza), a sensação não é “que reviravolta!”, é “claro… era isso ou encarar o próprio fracasso”.
Agora, a leitura mais ácida: Sovereign é um filme sobre “liberdade” feito para humilhar a definição de liberdade vendida em palanque e podcast. Jerry prega soberania, mas entrega dependência: do ressentimento, do inimigo imaginado, do aplauso do público, e principalmente do próprio orgulho. É o evangelho do “eu não reconheço sua autoridade” usado como desculpa para não reconhecer a realidade — e a realidade, como sempre, cobra à vista.
Serviço: o filme estreou no Tribeca em 8 de junho de 2025 e teve lançamento limitado nos EUA (cinema e VOD) em 11 de julho de 2025, pela Briarcliff.

