AS RELAÇÕES FAMILIARES, a defesa de uma causa, uma denúncia de autoritarismo, a realidade histórica do racismo, o cotidiano tecnológico, a força social da arte. Um documentário pode ser sobre qualquer uma dessas coisas ou, bem, sobre qualquer outra. O ano de 2016 foi mais uma evidência da força do gênero em termos de abundância temática, liberdade de realização e relevância crescente.
- O Futebol
A Copa do Mundo de 2014 no Brasil é o pano de fundo para o reencontro entre um filho e seu pai após cerca de 20 anos. A retomada, no entanto, provavelmente se distancia do imaginado – talvez, até mesmo por Sérgio Oksman, o herdeiro e diretor -, uma vez que a exposição emocional dá espaço à introspecção, a um silêncio incurável, interrompido apenas quando surgem as lembranças, sejam as de um sujeito veterano que conserva o futebol como paixão, ou aquelas responsáveis pelas idealizações de um quarentão que enxergava na Copa a oportunidade para repetir as idas ao estádio na companhia de seu patriarca – cuja voz, imaginava, seria a do locutor das velhas transmissões radiofônicas futebolísticas; consolidam, todas elas, uma relação que, sem demonstrativos mais evidentes, sustenta-se na memória, o mais sólido fio condutor da experiência humana. (Leonardo Lopes)
Em Entre os Homens de Bem, não existe precedente para uma denúncia, para confronto, enfim, trata-se de uma proposta completamente distinta – e, dentro de sua estrutura, igualmente funcional. Iniciando sua trajetória com uma sequência que mostra Jean Wyllys, o objeto da narrativa, numa sessão espiritual de umbanda – corrijam-me se eu estiver equivocado -, o longa-metragem de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros deixava ali evidente parcela destacada de suas intenções: a humanização daquela figura. (Leonardo Lopes)
“Quando você é reprimido e não tem defesa, a única coisa que você pode fazer é documentar as atrocidades.”
Huang, um jovem chinês sem qualquer – mesmo – experiência ou conhecimento em termos de realização cinematográfica, documental ou jornalística e presumivelmente sem formação superior ou elevado grau de intelectualidade, foi o responsável por esta emblemática frase que é definitiva não apenas de Hooligan Sparrow, como da relevância e comprometimento social de que o documentário enquanto gênero artístico dota, de maneira geral.
A jovem Nanfu Wang não precisou mais do que a velha máxima “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – e longe de mim reforçar qualquer discurso pseudo-meritocrático com isso – para construir uma produção digna de grande admiração. (Leonardo Lopes)
- A 13ª Emenda
Produção de Ava DuVernay para o serviço de streaming Netflix, A 13ª Emenda exala relevância e contundência. Realizando um resgate histórico, propõe-se ao entendimento do final da escravidão enquanto um mero renascimento disfarçado da lógica racista na organização social estadunidense, a partir deste ponto sendo velada sob os pretextos da “guerra às drogas” e do “combate ao crime”, motivadores do endurecimento inadequado das leis – realizado pelas figuras mais inesperadas – e da massificação do encarceramento; ao corretamente dar voz àqueles que sofreram factualmente com o hostil cenário norte-americano, o documentário torna-se instrumento de transformação, enquanto contextualiza-se de maneira progressivamente eloquente à atualidade ao embasar factualmente uma noção cujo conhecimento já deveria existir: das práticas policiais racistas à sobrecarga do sistema carcerário, todas as medidas públicas de caráter retrógrado – racistas, xenófobas etc -, inibidoras do progresso, invariavelmente sustentam seu desumano esqueleto com uma motivação fundamentalmente financeira e corporativista – e isto jamais dirá respeito apenas à realidade dos Estados Unidos da América. (Leonardo Lopes)
Distribuindo seus 90 minutos entre declarações da época dos grandes diretores que encabeçaram o movimento – alguns deles: Carlos Diegues, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni -, cenas de seus filmes e outros arquivos jornalísticos de áudio e vídeo relativos à cultura no período, o documentário possui um evidente trabalho primoroso de pesquisa; mais do que isso, existe uma organização narrativa muito coerente no longa-metragem, de modo a estruturar linearmente os atos deste verdadeiro experimento catártico cinematográfico – as raízes de seu pensamento como reflexo de um anseio social, seu modo de produção artística, auge popular e, enfim, a derrocada em 1964, com o Golpe Militar -, construindo um diálogo coerente entre os depoimentos de arquivo e as sequências expostas em tela – estas, responsáveis sobretudo pela provocação do interesse do espectador nas obras presentes. (Leonardo Lopes)
Menções honrosas:
Werner Herzog, em momentos distintos da produção, inteligente e ironicamente – mesmo divertidamente – direciona indagações pertinentes às visões mais otimistas da virtualidade, provocando uma reflexão quase flusseriana a respeito dos meios tecnológicos e dispositivos móveis enquanto extensões do corpo humano e da lógica invertida à qual estamos assustadoramente nos submetendo, tornando-nos dependentes e repetidores de tais extensões – que o digam os robôs planejados para a superação dos desempenhos humanos, protagonistas de um dos segmentos da produção. (Leonardo Lopes)
- Addicted to Sexting
Incomoda a maneira descontraída como o sexting é tratado ao longo do documentário, o que acaba explicitando a falta de foco dos diretores. Afinal, é para ser engraçado, é para seduzir ou é para ser sério? Com personagens interessantes (ainda que poucos sejam desenvolvidos na narrativa), Addicted to Sexting fica pelo meio do caminho e se torna apenas uma distração para falar de uma forma engraçada de uma dependência cada vez maior que todos nós estamos sujeitos: o uso dos celulares como extensão de nossos corpos. (Tullio Dias)